sábado, 24 de outubro de 2009

o grito

A sua alma esvaiu-se pouco a pouco,
Os nervos enrijeceram-se: pedras e pedras.
Suporta o soco na cara, sem choro.
A lança, brandida há não sei quanto tempo,
Rasga os lençóis de vento.
- Ai daquele peito que atravessar à sua frente!
E por toda a estrada, à sua beira,
Os caminhantes, a passos lentos.
E não importa o quão larga é a estrada,
Eles sempre trafegam à margem;
E não importa o quão longa é a estrada,
Eles sempre caminham,
Mesmo que o horizonte sejam túmulos de vento.
Agora, a fina navalha em seu corpo.
Sulcos e sangue.
Em passos lentos,
Encolhe-se em meio à multidão de andarilhos.
Não adianta levantar o escudo:
Os caminhantes baixaram a guarda e andam a esmo.
Entretanto, um dia há de haver em que olhará para as reses do rebanho
E, sentindo o cheiro das tripas que secam nos varais ao longo da via
E as lâminas que lhe roçam o couro,
Sairá da estrada e embrenhar-se-á nas florestas...

E os guardas, avisados, a sirene tocarão e gritarão:

- Fechai as vossas janelas,
Cerrai as vossas portas,
Há um ladrão que ronda a vossa seara
E a qualquer momento poderá surgir do vosso jardim,
Entrar em vossa casa, cortar-vos a garganta
E saquear a vossa despensa.
De nada valerão as vossas armas:
O saqueador já traz o escudo soerguido
E quebrará com o martelo o elmo de vossas armaduras
E decepará com a foice a cabeça de vossos filhos.

Distante,
Cansado da corrida sem-rumo, em meio a um jardim,
Recosta-se em uma árvore e...


As cálidas rosas ferem, pungentes,
Deusas donas dos aromas, esplêndidas,
A gema dos recônditos ardentes,
Sombrias fendas das carências límpidas.

E os odores lhe entram nubentes
Dos poros pelas aberturas nítidas
Enlaçando-se aos ritmos plangentes
Que sua alma suspira de dores ríspidas.

Por seu corpo se espalham com a facúndia
Dos cheiros da feminina lascívia,
Arrebatando-o em doces enlevos.

Como um vinho suave traz a delícia
Do êxtase, o olor das rosas inebria
Seu ânimo com seus matizes vivos!


Pelos cortes
Os perfumes esquecem na carne seus cheiros
Doces
Suaves
Sinestésicos

Com as cores, diversas nuanças,
Bailarinas em folhagens e pétalas,
Dorme sonhando com crisântemos e dálias e girassóis e hortênsias e jasmins e margaridas e orquídeas e sempre-vivas

Sonha...

Era um lago amplo de céu azul
Arvores, pássaros, uma casinha de madeira, jardim
Os peixes beliscavam a isca
Podem comer à vontade peixinhos
Não tinha pressa
Pra que pressa?
Daí a pouco a noite, estrelas e luar
Amanhã o sol nascente
O lago, a casa, as árvores, o vento e os peixes
Podem comer peixinhos
Não há pressa
Pra que pressa?
Os meninos riam correndo, correndo
Os velhos liam nas preguiçosas
Cadê as goiabas que guardei aqui?
Não faz mal
Tantas laranjeiras nos quintais
Mulher, a minha botina tá sorrindo aos montes
Não faz mal a gente não precisa mais comprar
Pressa? Pra que pressa?
Era um lago amplo de céu azul
Árvores pássaros uma casinha de madeira jardim.

Sonha...

Numa taverna
Medalhas escudos brasões insígnias
Adornavam paredes
Alegres
Pessoas
Bebiam às pampas
Cantavam dançavam falavam
Histórias antigas

Um
De uma mesa sombria aos fundos
Levantou-se altaneiro
E depois de um longo gole
Recordou-se sobranceiro:

Quando levantei meu grito,
A batalha se travava sangrenta,
As espadas tiniam o seu aço,
Brandiam-se os sabres,
Cravavam-se no peito as lanças.
Havia homens que,
Enquanto seus exércitos guerreavam,
Sentavam-se em banquetes fartos,
Comiam carnes sobrasadas,
Bebiam vinho e cerveja,
Fumavam charutos e cigarros,
Comiam as suas e as outras mulheres
E, em meio aos estratagemas que traçavam,
Arrotavam e sambavam,
Xingavam e compunham poemas,
Eram lidos nas academias
E nos conselhos falavam mais alto.

Meu brado saiu desbragadamente alto
Num tom grave e sem solavancos
Num instante em que as mulheres dos soldados
Cozinhavam e lavavam roupas
E olhavam para o horizonte
Sabendo que do outro lado
Seus maridos se lambuzavam de sangue.

Tomou mais um gole de vinho e sentou-se, para esquecer.

Na parede
Ao lado das insígnias escudos brasões e medalhas
Uma rosa branca

Eram tempos de botas sorridentes e lago amplo de céu azul.
Árvores pássaros uma casinha de madeira jardim.

Elio Oliveira Cunha