sábado, 8 de novembro de 2008

Por que a poesia nos fascina tanto?

Gostaria de estar escrevendo neste instante com um copo de cerveja à mão. Nunca vi uma combinação tão perfeita. Principalmente quando se trata de poesia. Ela (ou seriam elas?) nos carrega para um mundo em que podemos sonhar todas as possibilidades humanas: somos reis, magos, magnânimos, altivos, líricos, revolucionários. Somos o que quisermos ser. Quem poderia realmente compreender, amar e sentir o poema de Manuel Bandeira, transcrito abaixo, sem nunca ter bebido uma gota sequer de álcool?

Bacanal

Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- Vinhos! ... o vinho que é o meu fraco!...
Evoé Baco!

O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e eu não domo!
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!

Essa ligação é tão visceral que chega a constituir-se em figura na qual a beleza se hiperboliza por conta da comparação, como neste trecho de um poema de Mário Quintana - que nos suscita uma imagem sublime, serena e plástica.

Eu fiz um poema belo
e alto
como um girassol de Van Gogh
como um copo de chope sobre o mármore
de um bar
que um raio de sol atravessa

A plasticidade é marca desse mestre. Veja como ele a consubstancia neste metapoema:

O Poema

Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como uma pequenina moeda de prata perdida para sempre
na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
condição de poema.

Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.

Um poema nos liga a outro, porque, mesmo que não saibamos disso, eles se comunicam e se falam. E se os homens deixassem de haver, perdidas para sempre no éter ficariam as vozes dos poemas, num diálogo oximoramente mudo, a dizer de nossas passageiras existências. Mas, neste momento em que estou vivo, posso ouvir a voz de um poema de Fernando Pessoa que nos fala de Cesário Verde, que nos fala da singular maneira desse poeta estar no mundo e perceber o mundo:

Que pena tenho dele! Ele era um camponês,
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas
E a maneira como dava pelas pessoas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha

E também, neste mesmo momento em que estou vivo e respiro, posso ouvir o grito de meu próprio poema:

- Fechai as vossas janelas,
Cerrai as vossas portas,
Há um ladrão que ronda a vossa seara
E a qualquer momento poderá surgir do vosso jardim,
Entrar em vossa casa, cortar-vos a garganta
E saquear a vossa despensa.
De nada valerão as vossas armas:
O saqueador já traz o escudo soerguido
E quebrará com o martelo o elmo de vossas armaduras
E decepará com a foice a cabeça de vossos filhos

Talvez seja por isso que a poesia nos fascina tanto: ela nos retira de nossa limitada existência em preto-e-branco e nos faz senhores dos sonhos, da beleza e de todas as vontades, nos faz homens com uma sensibilidade capaz de perceber todas as nuanças da vida.

Elio Oliveira Cunha