sexta-feira, 22 de abril de 2022

Deu polícia no samba

Fecharam o Calixto numa noite de samba. Dizem que foi o dono da funerária que a polícia mandou chegar. A alegria, a todo tambor, batucando, às vezes frenética, às vezes lânguida, ao ritmo da música e dos corações pulsantes. O samba mistura-se às notas noturnas de cerveja, derrama, toca contra a Desvida - a Indesejada e Intransigente. Não chegue! Vá com seu bafo rançoso (e sabre curvo), que o instante é de alegria. A amante saúda o samba, que o samba é de nostalgia; o falecido saúda o samba, que o instante é de folia; batuca no caixão e não sabe por que choram os seus; devia ele estar ali, no samba da frente, a dançar, a cantarolar, a bater os dedos na mesa, a bater na palma e no dorso da mão, como se tocasse pandeiro; devia estar ali na frente do samba, cantando a alegria, cantando a vida, esquecido da morte; devia estar ali, bamba, com o copo de cerveja na mão, rodopiando, rodando, sambando, como quisesse, como soubesse. O morto quer a vida, o morto quer o samba, venha não, seu polícia, que é minha despedida - último sopro de vida no desolado esquife; venha não, seu polícia, tenha dó deste morto que escorrega da vida; venha não, seu polícia, que o instante é de alegria, de saudade de vida; venha não, seu polícia, carrasco de samba - que o instante é de vida; o samba, seu polícia, rompe dos tambores, das cuícas e dos amores; o samba, seu polícia, rompe dos tambores, dos pandeiros e das cores; o samba, seu polícia, rompe dos tambores, dos cavaquinhos e das dores; o samba, seu polícia, rompe dos tambores, dos banjos, contra os temores; o samba mata a morte e faz o morto batucar o batuque no caixão, que o instante é de alegria; um sorriso ensaia a boca murcha, quer cantar; seu último desejo você não pode negar! Venha não seu, polícia, deixe o samba chacoalhar este caixão, que o instante é de vida - você não pode negar. Sem ninguém ver, que vivo não vê alma de morto, dança samba, rodopia, toma cerveja; sem ninguém ver, que vivo não vê vontade de morto, sacode no caixão, saracoteia, esbanja-se - que o instante é de alegria. Não venha não, seu polícia, que a vida é feita de samba, samba para gente sambar! Você que é da morte, que quer dar à vida outro norte, que quer matar a alegria do Norte, venha não, seu polícia, que o instante é de vida! Você que é cassetete, força bruta, cacete, venha não seu polícia, deixe a alegria amanhecer, que o morto escorrega da vida, parte sem retorno, parto ao avesso, retorna para o nada; você que é chute, coice e coisa ruim, venha não, seu polícia, deixe a gente sambar; que o samba é feito de vida, vida para gente sambar; você que é bala, bala na cara, bala na costa, que é polícia, venha não, deixe o samba para cá! Cá estamos: nosso lugar; o morto samba, a vida samba, em todo lugar; cá estamos: nosso lugar; largue a gente, a gente só quer sambar; um pouco de samba, para quem tem carnadura de tanto penar; para quem labora o dia, e quer, na noite, a noite espantar; para quem a vida esfola, e à vida o samba dá; não feche, não seu polícia, deixe o morto sambar; vá com seu sabre curvo, de morte, longe, longe danar-se; não feche não, seu polícia, que a manhã quer vir com samba, para a vida engraçar; não feche não, seu polícia, que este morto não quer sair triste, para seu longo caminhar; não feche não, seu polícia, que o samba é vida, que a vida quer sambar, que o samba não quer morte para a  gente findar; você que ganha com a morte, você que obedece ao dono da morte, da morte que quer nos matar, vão embora e deixem a gente sambar, que a gente só quer sambar e a vida festejar.

Elio Oliveira Cunha


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Partidas

Nunca direi que as palavras foram em vão,
Embora, desde que partiram da garganta, 
Em gritos de esperança de futuro, anos se vão.
Meteram-se, extraviadas, ignoradas, não sei, perdidas, caídas, sem vida, talvez, em ermo socavão.


Elio Cunha

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Guardados


Em 2009, na escola Flora Calheiros Cotrin, uma aluna do 8º ano “F” entregou-me um poema para eu ler. Após a leitura, guardei-o comigo. Obviamente com o consentimento da autora. O texto permaneceu guardado e esquecido por dois anos.
No final deste ano, ele foi redescoberto. Um belíssimo presente de Natal que quero compartilhar com os leitores desse blog.
É bom que se diga: está sendo transcrito sem nenhuma modificação. Tudo está igualzinho como a autora o fez. Quem disse que precisa de alterações? Perfeito. Lembrem-se: trata-se de um texto produzido por uma adolescente de 13 anos. Essa é a medida.
Fiquei feliz e envaidecido por ter participado, de alguma forma, da história desse poema. Naquele ano de 2009, desenvolvi um projeto de produção de textos poéticos. Alunos que nunca tinham escrito uma poesia puderam experimentar, como autores, a mais sublime arte da palavra escrita. Criamos blogs e publicamos textos. “Solidão”, de Jéssica Caroline, é um poema que surgiu desse trabalho. Não foi escrito em sala de aula, mas é uma planta que brotou de sementes lançadas em campos lavrados, em certa medida, pelo labor pedagógico.


Solidão

Aqui estou
No canto deste quarto
Escuro e gelado
Ou será solidão?
Às vezes sinto vontade
De dizer “oi”
Dizer “oi”?
Para quem
Se estou sozinha?!

Minha garganta arranha
Com uma louca vontade
De gritar
Quem vai me ouvir
Se estou sozinha?!

Esta casa é tão...
Gelada, escura e sombria
Ou será a solidão?
Sinto um arrepio
Tenho muito medo de ficar
Assim pra sempre
Tão sozinha
Sem ninguém para dizer
Alguma coisa
Só as paredes rabiscadas
Com escritos
De uma alma atormentada
Pela solidão

Talvez eu deva tomar alguma atitude
Levantar desse chão molhado de lágrimas
Abrir as janelas e deixar o sol entrar
Não posso
Porque toda vez que abro
Sinto um nó na garganta
Uma dor no peito
Uma tristeza sem tamanho
Abro as janelas
E vejo o que já esperava
É inverno
O sol foi embora
E me abandonou
Tarde demais
Estou sozinha
Talvez pra sempre
Estou me sentindo
Abandonada e solitária
Fecho as janelas e volto
Para o canto do quarto
E desabo em lágrimas

Quero desabafar
Desabafar?
Com quem
Se estou sozinha?
E agora abandonada


            Um poema encantador e angustiante, não é? E aqui vale dizer que este texto, agora publicado, ficou também guardado, por mais de seis anos. Escrito em dezembro de 2011, somente agora veio a lume. Por isso, o título “Guardados”, a dizer a permanência de recolhimento do poema de Jéssica e deste texto feito à guisa de apresentação e história.



Elio Cunha

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Soneto do poema-desejo

Quero o poema reluzindo argênteo,
Como escamas de peixe sob o sol,
Ao salto das cachoeiras do Teotônio,
Compondo seus matizes do arrebol.

Majestoso, dance suave e elegante,
Como nos campos, a valsa dos lírios;
Ousado, com força sobrepujante,
Revele ao mundo os esconsos martírios.

Lançado aos sulcos de Ceres fecunda,
Possa brotar como ínfimas pevides
Que carregam a promessa profunda

De frutos maduros: vindoura messe.
E o poema, para que não o olvides,
Tornará procura, sagrada prece.

Elio Cunha

À época em que havia Teotônio.

sábado, 9 de março de 2013

Seu amor

Seu amor
Era como dois pássaros comendo capim ao alvorecer.

A única coisa que nele fazia sentido
Era um cântaro vermelho em que colhia pequenos suspiros noturnos.

Vinha sempre solícita e meiga
E não havia como não partirmos,
Em cavalos alados e saltitantes,
Para nuvens que, plúmbeas e carregadas,
Explodiam nas patas de Pégaso
E “o quente arfar das virações marinhas”
Soprava úmido em seu corpo,
Transido de desatino e insensatez

Ao fim, esmaecido de tanto paraíso,
Eu a via deixar o quarto sem se despedir.
Apenas um sorriso deslizante em seus lábios
E a certeza de que, contente e satisfeita,
A porta da alcova tornaria a abrir,
Mas seu coração, seu coração continuaria insano e sem juízo
E voaria por aí, por azuis e arco-íris, como pássaros ao entardecer.

Elio Oliveira Cunha