Fecharam
o Calixto numa noite de samba. Dizem que foi o dono da funerária que a polícia
mandou chegar. A alegria, a todo tambor, batucando, às vezes frenética, às
vezes lânguida, ao ritmo da música e dos corações pulsantes. O samba
mistura-se às notas noturnas de cerveja, derrama, toca contra a Desvida - a
Indesejada e Intransigente. Não chegue! Vá com seu bafo rançoso (e sabre curvo), que o instante é de alegria. A amante saúda o samba, que o samba é de nostalgia; o falecido saúda o samba, que o instante é de folia; batuca no caixão e não
sabe por que choram os seus; devia ele estar ali, no samba da frente, a dançar,
a cantarolar, a bater os dedos na mesa, a bater na palma e no dorso da mão,
como se tocasse pandeiro; devia estar ali na frente do samba, cantando a
alegria, cantando a vida, esquecido da morte; devia estar ali, bamba, com o
copo de cerveja na mão, rodopiando, rodando, sambando, como quisesse, como
soubesse. O morto quer a vida, o morto quer o samba, venha não, seu polícia, que é minha despedida - último sopro de vida no desolado esquife; venha não, seu
polícia, tenha dó deste morto que escorrega da vida; venha não, seu polícia,
que o instante é de alegria, de saudade de vida; venha não, seu polícia,
carrasco de samba - que o instante é de vida; o samba, seu polícia, rompe dos
tambores, das cuícas e dos amores; o samba, seu polícia, rompe dos tambores,
dos pandeiros e das cores; o samba, seu polícia, rompe dos tambores, dos
cavaquinhos e das dores; o samba, seu polícia, rompe dos tambores, dos banjos,
contra os temores; o samba mata a morte e faz o morto batucar o batuque no
caixão, que o instante é de alegria; um sorriso ensaia a boca murcha, quer
cantar; seu último desejo você não pode negar! Venha não seu, polícia, deixe
o samba chacoalhar este caixão, que o instante é de vida - você não pode negar.
Sem ninguém ver, que vivo não vê alma de morto, dança samba, rodopia, toma
cerveja; sem ninguém ver, que vivo não vê vontade de morto, sacode no caixão,
saracoteia, esbanja-se - que o instante é de alegria. Não venha não, seu
polícia, que a vida é feita de samba, samba para gente sambar! Você que é da
morte, que quer dar à vida outro norte, que quer matar a alegria do Norte, venha
não, seu polícia, que o instante é de vida! Você que é cassetete, força bruta,
cacete, venha não seu polícia, deixe a alegria amanhecer, que o morto escorrega
da vida, parte sem retorno, parto ao avesso, retorna para o nada; você que é
chute, coice e coisa ruim, venha não, seu polícia, deixe a gente sambar; que o
samba é feito de vida, vida para gente sambar; você que é bala, bala na cara,
bala na costa, que é polícia, venha não, deixe o samba para cá! Cá estamos:
nosso lugar; o morto samba, a vida samba, em todo lugar; cá estamos: nosso
lugar; largue a gente, a gente só quer sambar; um pouco de samba, para quem tem carnadura
de tanto penar; para quem labora o dia, e quer, na noite, a noite espantar;
para quem a vida esfola, e à vida o samba dá; não feche, não seu polícia, deixe
o morto sambar; vá com seu sabre curvo, de morte, longe, longe danar-se; não
feche não, seu polícia, que a manhã quer vir com samba, para a vida engraçar;
não feche não, seu polícia, que este morto não quer sair triste, para seu longo
caminhar; não feche não, seu polícia, que o samba é vida, que a vida quer sambar,
que o samba não quer morte para a gente
findar; você que ganha com a morte, você que obedece ao dono da morte, da morte
que quer nos matar, vão embora e deixem a gente sambar, que a gente só quer
sambar e a vida festejar.
A finalidade deste blog é abrigar palavras significativas. Literatura, filosofia, direito e história. Textos que possam, de certa forma, interferir em nossa realidade, criar redes de sentido, instaurar o novo e ser "um grito das coisas amordaçadas", pois, como disse o poeta Ferreira Gullar, "o canto não pode ser uma traição à vida e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz".
sexta-feira, 22 de abril de 2022
Deu polícia no samba
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